TEXTO I – APROXIMAÇÃO AO DIREITO EMPRESARIAL

Bibliografia geral: ASCARELLI, Tullio. Saggi di diritto commerciale. Milano: Giuffrê, 1955. BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969. GALGANO, Francesco. Lex mercatoria. Bologna: Societá Editrice Il Molino, 1993. PACKER, Amilcar Douglas. Direito comercial: origem e evolução. Juruá, 2007. SOUZA, Ruy de. O direito das empresas. Belo Horizonte: Bernardo Alvares, 1959.

1 Por que uma disciplina jurídica de graduação sobre Direito Comercial/Empresarial?

Numerosas disciplinas jurídicas têm o seu conteúdo definido para tratar de disposições normativas sistematicamente agrupadas pelo legislador. No Direito Privado brasileiro, há os exemplos das disciplinas relativas ao Direito Civil, que se organizam pelos livros do Código Civil, e Direito do Trabalho, as quais se organizam com apoio na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Para o Direito Comercial, a lei de referência no Direito brasileiro era o Código Comercial de 1850, o qual, calcado em um padrão estabelecido no Direito francês, voltava-se para regulamentar as atividades dos comerciantes. Atualmente, essa lei é o Código de Civil de 2002, que denomina o seu Livro II de Direito de Empresa, entendendo a palavra “empresa” como a atividade exercida por empresários. Por esta razão, falaremos a seguir de Direito Empresarial.

2 Por que reconhecer um Direito Empresarial e estudá-lo com certa autonomia em relação ao Direito Civil?

Porque a atividade econômica privada necessita de normas jurídicas voltadas especificadamente para discipliná-la, provocando a edição de leis que por vezes se diferenciam do previsto no Direito Civil. Por exemplo, a negociação de créditos regida pelo Direito Civil pode ser afastada em razão de uma lei específica sobre títulos de crédito. Nessa mesma linha, a disciplina da insolvência prevista no Código Civil pode ser alterada por uma lei instituindo o regime jurídico de recuperação judicial e falência. Assim, a atividade econômica privada poderá ser regulada especialmente por outras leis, como se vê nos casos tratados pelo Direito Empresarial, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor. Veja esse exemplo advindo do Art. 1.268 do Código Civil[1]: pela disciplina geral da propriedade, se alguém vende coisa alheia sem autorização, a venda não valerá. Acaso João venda, sem autorização, três sacas de soja que pertencem à Maria, pelo Direito comum, a venda não tem validade e o comprador terá que devolvê-las à dona. Entretanto, se a venda for feita em estabelecimento comercial, a lei pode especialmente dispor que, nessa circunstância mercantil, o comprador não será obrigado a devolver o que adquiriu de boa-fé. Ou seja, acaso João venda as mesmas três sacas de café, pertencentes à Maria, em seu estabelecimento empresarial, o comprador que as adquiriu de boa-fé não as terá que devolvê-las.

3 Por que é necessário conhecer o Direito Civil para se estudar o Direito Empresarial?

A atividade econômica capitalista faz uso permanente da autonomia negocial privada, da propriedade e do contrato, que são institutos centrais ao Direito Privado.  Assim, a identificação de sujeitos de direito e sua qualificação como proprietários ou como contratantes permanecem matérias abordadas pelo Direito Civil, o que é aproveitado pelo Direito Empresarial como base normativa geral, a qual incidirá nas relações jurídicas quando não for afastada por leis especiais. Dessa forma, conhecer os demais livros do Código Civil, particularmente Parte Geral, Obrigações e Propriedade, revela-se essencial para o estudo do Direito de Empresa.

4 Como surgiu o Direito Empresarial?

O Direito Comercial, hoje absorvido pelo Direito Empresarial, originou-se do poder de os comerciantes conseguirem autonomia para que eles mesmos editassem normas voltadas para regulamentar as atividades de comércio. Ao longo dos séculos, esse poder variará em função do papel dos comerciantes na economia das nações. Daí se defender que o Direito Empresarial se justifica principalmente por razões históricas: em dado contexto histórico, os comerciantes alcançaram esse poder. Não se falará, portanto, de um Direito Comercial na Roma antiga, embora nessa época o comércio fosse tanto abundante como também regulamentado juridicamente. Porém, à medida que, na Idade Média, os comerciantes organizados em ligas ou associações progressivamente conseguiram que os governantes lhes reconhecessem autonomia legislativa (leis e costumes aplicáveis aos comerciantes) e de jurisdição (tribunais de comércio), um corpo normativo autônomo voltado para regulamentar os comerciantes e suas atividades vai se formar.

Por esse movimento, o Direito Comercial emerge na Idade Média como um direito de uma classe – os comerciantes – com conteúdo voltado para regulamentar as situações comuns ao cotidiano mercantil. Entretanto, com o incremento do poder monárquico e a formação dos Estados nacionais europeus, essas normas serão posteriormente tratadas pelos governantes como direito emitido pela autoridade do Estado, desse modo passando da condição de Direito estatutário para a de Direito estatal.  Pode-se exemplificar a primeira categoria por meio da Tabula Amalphitana – nos séculos VII a XI, a cidade de Amalfi – situada onde hoje é território da Itália – conseguiu permanecer como uma República independente e seus comerciantes consolidaram um estatuto de costumes lembrado no comércio marítimo mediterrâneo até o séc. XVI. Já na segunda categoria, podemos ver as L’Ordonnance pour le Commerce  (1671) L’Ordonnance pour la Marine (1681) editadas pelo Rei da França, a primeira com ênfase no comércio terrestre e a segunda também tocando o comércio marítimo. De acordo com esse movimento, a autonomia do Direito Comercial prosseguiu, mas, num segundo momento, firmada por leis estatais.

5 O Direito Comercial e as revoluções liberais – a passagem do absolutismo para o liberalismo

Atividades de comércio, manufatura de bens e transações financeiras são conhecidas desde cedo na história da humanidade. Entretanto, para explicar a realidade atual, mostra-se necessário atentar para um movimento particularmente importante no Ocidente europeu, que marca a passagem, em vários países, de um sistema político absolutista para um sistema liberal. No contexto absolutista, a atividade econômica promovida pelos súditos dependia fortemente de prévia autorização real. Assim, para instalar e operar um moinho, abrir um porto, um banco ou uma fábrica de vidro era necessário obter uma licença do monarca. Essas licenças podiam ser concedidas individualmente ou mediante a intermediação de corporações de ofício – aqueles aceitos em uma determinada corporação estavam autorizados a exercer a respectiva atividade. A possibilidade de o monarca autorizar ou proibir que se exercesse determinada atividade econômica repercutia para além de regulamentar o direito ao trabalho (privilégios), pois também permitia que se formassem monopólios (privilégios exclusivos) garantidos pela autoridade estatal.

Com as revoluções liberais, esse poder absolutista na economia foi fortemente questionado, e seu caráter geral passou a ser residual. Um importante eixo criado para redução dos poderes do governante foi construído sob a noção política de liberdade de trabalho – a atividade do comerciante é uma profissão e ele não pode ser impedido de trabalhar, salvo no caso de atividades especiais. Essa mudança fez com que o Direito Comercial estatal, que geralmente atuava utilizando-se de balizas subjetivas – aplicava-se ao sujeito autorizado pelo Estado (matriculado) a ser comerciante – buscasse outros critérios para definir a quem (sujeitos) e em que casos tal Direito incidiria (matéria do Direito Comercial).

5.1 Atos de comércio e Direito de Empresa

Uma importante lei que marcou essa passagem para o sistema político liberal foi o Código Comercial francês de 1807, a determinar que o Direito Comercial aplicar-se-ia em função de um sistema objetivo, baseado na prática de atos jurídicos previamente identificados.  Nesse Código, um conjunto de atos jurídicos foi eleito como capaz de determinar a aplicação da lei comercial a cada caso. Esses atos, considerados atos jurídicos comerciais, foram assim qualificados em razão da natureza de seu conteúdo, não por serem necessariamente praticados por comerciantes. Ao contrário, comerciantes seriam aqueles que fizessem de sua profissão habitual o exercício de atos de comércio.

Esse sistema marcadamente objetivo não logrou se firmar no Brasil, levando ao retorno da perspectiva subjetiva, agora ordenada sob a noção de empresário, categoria assim formada por sujeitos que exercem profissionalmente atividade empresarial. Essa noção foi adotada pelo Código Civil italiano de 1942 e seguida pelo Código Civil brasileiro de 2002.

Estabelecido, no Direto positivo em vigor, o Direito de Empresa, cabe estudarmos, inicialmente, a matéria normativamente delimitada.

5.2 O Direito Comercial/Empresarial no Brasil

Uma característica da condição jurídica do Brasil colonial era sua estrita submissão ao absolutismo. Com efeito, enquanto Inglaterra e França guerreavam por mercados em face da Revolução Industrial, a instalação de manufaturas no Brasil era em geral proibida e seu comércio formal com outras nações era estritamente controlado por Portugal. Entretanto, essa situação se alterou com a vinda das cortes portuguesas à colônia, em 1808, seguida pela independência do Brasil e sua constituição como monarquia em 1822. Ao longo desse processo político, ocorre a liberalização da economia brasileira, um movimento que vai culminar na promulgação do Código Civil de 1916, já sob a égide da República antes proclamada em 1889, situação em que o poder privado sobre imóveis – a propriedade de terras – desvincula-se completamente da aristocracia monarquista.

Em passo com a independência política do país, então constituído como Império do Brazil, surgiu a legislação comercial brasileira promulgada no Séc. XIX. Ela revelou forte influência francesa, mas foi temperada pelo poder monarquista imperial que editou a Constituição de 1824. Esses elementos formam o contexto político-jurídico em que o Brasil promulga a Lei n. 556 de 25 de junho de 1850, o Código Comercial.

Os objetos regulados pelo Código Comercial revelaram a proposta de fixar a matéria do Direito Comercial, ou seja, conjunto de relações regidas por esse ramo do Direito, como se vê no índice daquele Código, abaixo transcrito:

ÍNDICE TEMÁTICO DO CÓDIGO COMERCIAL (Lei n. 556/1850)

Parte Primeira – Do Comércio em Geral

Título I – Dos Comerciantes

Capítulo I – Das Qualidades Necessárias para ser Comerciante

Capítulo II – Das Obrigações Comuns a Todos os Comerciantes

Capítulo III – Das Prerrogativas dos Comerciantes

Capítulo IV – Das Disposiçõs Gerais

Título II – Das Praças do Comércio

Título III – Dos Agentes Auxiliares do Comércio

Capítulo I – Disposições Gerais

Capítulo II – Dos Corretores

Capítulo III – Dos Agentes de Leilões

Capítulo IV – Dos Feitores, Guarda-Livros e Caixeiros

Capítulo V – Dos Trapicheiros e Administradores de Armazéns de Depósitos

Capítulo VI – Dos Condutores de Gêneros e Comissários de Transportes

Título IV – Dos Banqueiros

Título V – Dos Contratos e Obrigações Mercantis

Título VI – Do Mandato Mercantil

Título VII – Da Comissão Mercantil

Título VIII – Da Compra e Venda Mercantil

Título IX – Do Escambo ou Troca Mercantil 

Título X – Da Locação Mercantil

Título XI – Do Mútuo e dos Juros Mercantis

Título XII – Das Fianças e Cartas de Crédito e Abono

Capítulo I – Das Fianças

Capítulo II – Das Cartas de Crédito

Título XIII – Da Hipoteca e do Penhor Mercantil

Capítulo I – Da Hipoteca Capítulo II – Do Penhor Mercantil

Título XIV – Do Depósito Mercantil

Título  XV – Das Companhias e Sociedades Comerciais

Capítulo I – Disposições Gerais

Capítulo II – Das Companhias de Comércio ou Sociedades Anônimas

Capítulo III – Das Sociedades Comerciais

Seção I – Disposições Gerais

Seção II – Da Sociedade em Comandita

Seção III – Das Sociedades em Nome Coletivo ou com Firma

Seção IV – Das Sociedades de Capital e Indústria

Seção V – Da Sociedade em Conta de Participação

Seção VI – Dos Direitos e Obrigações dos Sócios

Seção VII – Da Dissolução da Sociedade

Seção VIII – Da Liquidação da Sociedade

Título XVI – Das Letras, Notas Promissórias e Créditos Mercantis

Título  XVII – Dos Modos Porque se Dissolvem e Extinguem as Obrigações Comerciais

Capítulo I – Disposições Gerais

Capítulo II – Dos Pagamentos Mercantis

Capítulo III – Da Novação e Compensação Mercantil

Título  XVIII – Da Prescrição

Parte Segunda – Do Comércio Marítimo

Parte Terceira – Das Quebras

Título Único – Da Administração da Justiça nos Negócios e Causas Comerciais

Inicialmente, o Código Comercial de 1850 mesclou elementos corporativos, tal como a matrícula dos comerciantes, com elementos objetivos, qual seja, o efetivo exercício de mercancia, para qualificar o comerciante. Veja esse sistema nos primeiros artigos do referido Código:

Art. 1º. Podem comerciar no Brasil:

1 – Todas as pessoas que, na conformidade das leis deste Império, se acharem na livre administração de suas pessoas e bens, e não forem expressamente proibidas neste Código.

(…)

Art. 4º. Ninguém é reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e faça da mercancia profissão habitual (artigo nº 9).

(…)

Art. 9º. O exercício efetivo de comércio para todos os efeitos legais presume-se começar desde a data da publicação da matrícula.

O Código Comercial de 1850 foi seguido por três documentos que merecem destaque: O primeiro trata-se do Regulamento n. 737 de 25 de novembro de 1850, que, ao abordar a jurisdição dos tribunais de comércio, também ofereceu uma definição de mercancia, em seu art. 19:

Art. 19. Considera-se mercancia:

§ 1º A compra e venda ou troca de effeitos moveis ou semoventes para os vender por grosso ou a retalho, na mesma especie ou manufacturados, ou para alugar o seu uso.

§ 2º As operações de cambio, banco e corretagem.

§ 3º As emprezas de fabricas; de commissões; de depositos; de expedição, consignação e transporte de mercadorias; de espectaculos publicos.

§ 4.º Os seguros, fretamentos, risco, e quaesquer contratos relativos ao cornmercio maritimo.

§ 5. º A armação e expedição de navios.

O segundo foi o Decreto n. 1.597, de 1º de maio de 1855, o qual, ao tratar da jurisdição comercial, estabeleceu que:

Art. 1º A jurisdicção Commercial voluntaria, ou contenciosa, e administrativa comprehende á todos os Commerciantes matriculados ou não matriculados.

E o terceiro foi o Decreto n. 6.385, de 30 de Novembro de 1876, que devolveu a jurisdição do comércio à justiça comum, nos seguintes termos:

Art. 3º A jurisdicção voluntaria e administrativa dos actuaes Tribunaes e Conservatorias do Commercio, quanto às attribuições referidas no art. 1º deste Decreto, fica desde já pertencendo aos Juizes de Direito, que no exercicio delles se regerão pelas disposições applicaveis do Codigo Commercial dos Regulamentos nos 737 e 738 de 25 de Novembro de 1850, do Decreto nº 1597 do 1 de Maio de 1855 e as mais em vigor.

Assim, o sistema de matrícula do comerciante foi logo desprestigiado, bem como a dualidade de jurisdição – construída por meio dos Tribunais do Comércio – pouco durou, assim se afirmando no Brasil um Direito Comercial com autonomia legislativa, baseada no Código Comercial de 1850, que deveria regulamentar a atividade do comércio – a mercancia.

Entretanto, um traço marcante do Direito Empresarial é a pressão permanente dos empresários para que essas normas sejam constantemente adaptadas aos interesses de sua profissão. Principalmente em função dessa demanda, ocorreu no Brasil o fenômeno de substituição da disciplina codificada por leis especiais (descodificação do Direito Comercial). Desse modo, temas tais como deveres de contabilidade, registro do comércio, sociedades comerciais, títulos de crédito, regime de falências, disciplina do mercado financeiro, privilégios de propriedade industrial, foram progressivamente tratados em leis específicas.

Atualmente, o Código Comercial de 1850 foi parcialmente revogado, mantendo-se, porém, a parte voltada a regulamentar o comércio marítimo. O eixo central do Direito Empresarial deslocou-se para o Código Civil de 2002, consoante o seu art. 966:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

 

[1] Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono. § 1o Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição. § 2o Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo.